Acabou a
energia.
Fosse o
que fosse, deixou metade do vilarejo no escuro. Em plena véspera de natal, as
luzinhas, arranjos, guirlandas, crianças brincando na neve, os programas
televisivos de praxe: tudo foi substituído pelo breu.
Não que
tivesse de fato alguma importância. O único prato cheio em sua ceia de natal
era o dele próprio: era o oitavo natal que passava sozinho, somente com a
companhia do porta-retratos antigo que ganhara em sua última visita ao
hospital. Sua mulher já não tinha cabelos (um dos terríveis efeitos da
quimioterapia) e estava com uma aparência mórbida. Ambos sorriam em meio a um
grupo de médicos muito, muito sérios. Todas as figuras acompanharam-no na
escuridão que se seguiu, cantando a felicidade do povo lá fora no silêncio que
caiu sobre a casa.
“Minha
mulher fazia mais barulho que todas as crianças deste lugar juntas”.
Era uma
mulher espirituosa, como diriam os vizinhos. Ayra escolhera seu companheiro quando
pequena, eram colegas de classe e, assim, permaneceram juntos durante muito
tempo. Fazia piadas, ria de tudo, a
seriedade só vinha de tempos em tempos e, mesmo assim, aparecia em parcelas.
Realizaram os planos de viajar pelo mundo juntos, tiveram um cachorro,
plantaram uma árvore, não conseguiram ter um filho por questões óbvias. Além de
esposa, também era melhor amiga, por isso o rombo no coração de Charlie quando ela
partiu. Ele colecionava os objetos dela, guardando-os todos numa caixinha de joias
bordô: sua corrente preferida, uma fita de cetim (mesmo após insistências, Ayra
nunca deixou de usá-la para prender seus cabelos) e um frasco vazio.
“Ainda consigo sentir o perfume dela quando a saudade aperta”.
“Ainda consigo sentir o perfume dela quando a saudade aperta”.
E estava
acontecendo de novo. Geralmente antes de dormir, depois da oração rotineira,
sua mulher ainda se fazia presente no quarto. Às vezes sonhava com ela.
Acordava no meio da noite com a garganta seca, desnorteado, procurando o amor
pela casa inteira, só parava quando, sem querer, olhava pela janela e deparava a
cruz que fizera no jardim em homenagem à Ayra: esse era o maior problema do
natal. A nostalgia o tirava do mundo e o mundo o deixava triste quando voltava
à vida.
A energia
voltou.
O
ambiente em que se encontrava já não era mais o mesmo, estava totalmente diferente.
Já havia abandonado a sala de jantar e, depois do que pareceram muitas horas de
transe, encontrava-se sentado em sua cama. Do lado direito, perto da parede, viu-se
no que parecia um sono profundo, com um laço bordô no lugar onde estivera sua
aliança de casado e a corrente de ouro no pescoço. Já não sentia mais as dores
da velhice, nem mesmo as dores do coração. Do lado esquerdo, parada junto à
porta, podia-se ver uma silhueta. A sombra moveu-se em direção à sala de estar.
O senhor deixou-se deitado no quarto e correu para o lugar onde se encontrava
sua árvore de natal.
A estrela
no topo, que não acendia desde a tragédia, estava brilhando e despejando uma
luz amarela sobre tudo. A sensação era de aconchego total. Ayra estava parada,
com as mãos estendidas, indicando a ponta mais alta do objeto: de mãos dadas,
então, moveram-se em direção ao topo. O mundo inteiro estava chorando junto com
Charlie, que irradiava felicidade no reencontro. Como última lembrança do plano
real, levou consigo todo o amor que guardou durante sua vida ao lado da mulher
que jazia do lado de fora.
No fim,
tudo valeu a pena para os dois. Quando a notícia da morte de Charlie chegou aos
habitantes do vilarejo, houve comoção geral. E todas as casas, na noite de 24
de dezembro, recebiam a visita de uma luz muito forte com um suave cheiro de
baunilha, e... aconchegante.